domingo, 30 de novembro de 2008




Sentou na beirada da calçada, abaixou a cabeça e tudo girava. Tentou ler na parede o grafite onde havia a citação: “Não me acorde enquanto eu planejo sonhando’’. Ficou sem entender. Em noites como aquela, quando descia todos os tipos de bebidas sem ao menos saber o porquê, tudo parecia confuso. As pessoas sorriam demais, os casais se beijavam desesperadamente. Tudo girava. As estrelas também estavam em movimento compondo um carrossel de luzes brancas. Sorrisos, sorrisos... Eles nunca vão te amar como eu te amei, cantava.
Entrou cambaleando depois de tropeçar em um cachorro que lhe olhava e parecia pensar em quanto estúpido estava. Pegou mais uma dose de algo que rasgava sua garganta e avistou alguém que havia lhe chamado a atenção. Seu estômago parecia um caldeirão prestes a explodir. Aproximou-se dela e sorriu. “Estúpido, estúpido, estúpido!” Mas houve reciprocidade. Trocou meias palavras desnecessárias, acendeu um Marlboro, e em uma forte tragada, tentou impressioná-la soltando a fumaça com charme. Ela ria dele, sabia o que estava acontecendo. A certeza era que se tratava de um ego ferido. Não quis dar corda à carência e, em um gesto de solidariedade o beijou demoradamente.

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

COPO VAZIO




É sempre bom lembrar
Que um copo vazio
Está cheio de ar.
É sempre bom lembrar
Que o ar sombrio de um rosto
Está cheio de um ar vazio,
Vazio daquilo que no ar do copo
Ocupa um lugar.
É sempre bom lembrar,
Guardar de cor que o ar vazio
De um rosto sombrio está cheio de dor.
É sempre bom lembrar
Que um copo vazioEstá cheio de ar.
Que o ar no copo ocupa o lugar do vinho,
Que o vinho busca ocupar o lugar da dor.
Que a dor ocupa metade da verdade,
A verdadeira natureza interior.
Uma metade cheia, uma metade vazia.
Uma metade tristeza, uma metade alegria.
A magia da verdade inteira, todo poderoso amor.
A magia da verdade inteira, todo poderoso amor.
É sempre bom lembrar
Que um copo vazio
Está cheio de ar.

sábado, 11 de outubro de 2008

Rebeca


Rebeca estava deitada. Não queria acordar e abrir a veneziana, o sono lhe roubava a coragem. Estava satisfeita no escuro. Suas pernas formavam o desenho do pecado em linhas belas sob o lençol com a estampa de girassóis. A luz do abajur sobre nosso criado mudo permitia ver somente a metade de sua face. Face morena, em traços delicados e sorriso simétrico. A outra metade omitida pela sombra denunciava sua personalidade enigmática. Dei-lhe um beijo dizendo que me presenteara com uma noite inesquecível. Senti o perfume em seus cabelos e me reconheci como a pessoa mais feliz.
Sob a ducha quente, naturalmente sorri. Entreguei-me aos pensamentos. Lembrava do dia em que nos conhecemos naquele carnaval. Ela estava fantasiada de diabinha. Eu, de marinheiro. Fora ela que tomara a iniciativa. “Estou à deriva, o senhor poderia me ajudar?”. No vapor do espelho escrevi com o dedo um eu te amo dentro de um coração.
Fiz a barba como todos os dias; coloquei a gravata e preparei o café. Queijo fresco, carinho, café, pão, mel, amor. Dentro de um copo de cristal um botão de rosa. Sentei-me a sua frente. Adorava vê-la dormindo, a forma que se movimentava em sua inquietação, como posicionava suas mãos embaixo da bochecha, dentro daquele vestido curto de seda. Admirava seu corpo, suas curvas.
Olhei o relógio, eram quase sete horas. Passei mais alguns minutos sentados ao lado da cama. Certifiquei-me de que havia pegado a chave do carro, carteira. Constatei se todos os documentos estavam na pasta e coloquei seu café da manhã no criado mudo. Fechei a porta do quarto e saí. Lá fora o sol brilhava como eu nunca tinha visto. Um céu azul configurado com nuvens diversas. Havia uma em formato de felicidade.

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Tapa




Sentia-se fatigado com tudo aquilo. Trancou a porta e abriu o dicionário: Tapa, s. f. pano com que se vedam os olhos de burro pouco manso; s. m. bofetada, tapona. ta-pa. Parou. Pensou. Não conseguiu encontrar nenhum sentido. Parou novamente, decidiu apagar a luz. Tudo ficou claro.
Já não era a primeira vez que olhava para dentro. Momentos assim nunca foram fáceis, às vezes, só procurava entendimento para as coisas que o deixava confuso, junto de seu travesseiro, de seus discos, livros... Mas doía. Outras vezes, apenas fugia de qualquer tipo de pensamento. Dormia, se iludia.
Mas naquele dia foi diferente, ele sentia como queimava aquele tapa. A dor latejava em sua consciência. Tudo o que foi dito, tudo o que se abriu em uma mesa como uma espécie de segredo que sempre quisera guardar só para si, exposto assim, para os sete ares, para o mundo inteiro saber. Aquilo que era só seu. Sofreu. Pegou seu casaco, bebeu seu ultimo gole e saiu...
Quando a escuridão lhe cobriu os ombros, parou por instantes. Curtos instantes que lhe trouxe a memória fatos e gestos... Flagrou tudo o que havia acontecido. Havia subestimado demais. Desacreditou na pureza das virgens. Riu asperamente de sua ingenuidade. Ele próprio tinha lhe vedado os olhos.
Acendeu um cigarro enquanto caminhava em direção a varanda. Ali, sozinho, com seus pensamentos, sua mente lhe roubara qualquer espécie de esperanças. Prometera aos deuses, os quais nunca acreditou, jamais se entregar a um novo amor.

terça-feira, 7 de outubro de 2008

Todas as histórias são iguais


O frio daquele dia em janeiro era um pretexto para que minhas pernas tremessem. Na verdade, o contato extra-sensorial, o encontro do brilho dos olhos, os ciclistas passeando, as crianças fotografando, envolto de um sentimento de prazer por estar ali, mexia comigo de tal forma que tudo o que eu mais almejava naquele momento era não piscar, não queria perder um minuto sequer de toda aquela magia.
O senhor de boina já de idade avançada cujo olhar de resignação me encabulara. O croquete na vitrine suada de calor. A fotografia. Na retina, cada movimento. Na pele, cada toque.
A questão de histórias se desenrolarem de maneira inesperada é, de fato, muito curiosa. Ora elas são recheadas de planos, ora desatina o senso de realidade racional. Certa vez, me disseram que sempre sobra aquela velha nostalgia. Clichê bem verdadeiro. Mas o rolo desse filme queimou, antes que a história terminasse. Filme sem expectativas, nenhuma memória guardará metades.
Lá se encontram novamente os dois, sentados naquele mesmo quiosque. Com a loja de cartões postais caros. Exatamente como antes.
Talvez janeiro transforme-se em setembro. Talvez não esteja tão frio naquele lugar nessa época do ano, as pernas dessa vez não tremerão. Não terá ciclistas, muito menos o velho resignado. Os atores mudarão, mas o enredo não. Começará e terminará da mesma forma. E de um lado, o sentimento de tristeza corroerá. Porque todas as histórias são iguais.