terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

Véu vermelho

Não fazia um frio tão intenso assim há muito tempo. Suas bochechas estavam rosadas e o sangue rubro em sua boca confundia-se com a cor de seu batom. Mordia seus lábios numa inquietação interminável. Ela seguia pelo caminho rotineiro, virava as mesmas esquinas, dava bom dia ao mesmo jornaleiro, sempre acompanhada com ele. “Porque, mas porque fez isso comigo?” Hoje, passava por essas ruas sozinha, sentia falta de encostar seu rosto sobre o casaco dele, procurando proteção contra o vento. De segurar tão forte que nem mesmo o frio impedia de que suas mãos suassem. Não conseguia direcionar seus pensamentos a outro lugar. Cada banco, cada cartaz ou Café remetiam a memórias que lhe confundia os sentimentos. Apressou o passo, não via a hora de chegar em casa, dormir e esquecer-se de tudo por algumas horas.
Diante da porta, tentava encontrar a chave certa, fracassou em suas primeiras tentativas. Deixou o molho cair e se assustou com o barulho da lata de lixo que o cachorro derrubava vasculhando por restos de comida.
No saguão de entrada cumprimentou uma vizinha. Uma velha senhora que perdera seu marido na guerra, e que a partir de então, buscou para companhia uma dezena de gatos. Forçou um riso.
Entrando em sua casa, sentiu-se segura de todos, menos de si. Não conseguia preencher o vazio que lhe roubava a vontade de seguir em frente. Na sala, jogou as chaves com tanta força sobre a mesa de centro que derrubou um porta-retrato no chão. Entre os cacos, sorriam os dois, em um barco, na última viagem que fizeram.
Respirou fundo e decidiu tomar um banho. Abriu a torneira da banheira. Olhou-se no espelho e não surpreendeu-se com o que viu. Caminhou novamente em direção a sala quando percebeu um livro. Pegou-o, e na página que estava marcada leu:

Tudo é nada, e tudo
Um sonho finge ser.
O espaço negro é mudo.
Dorme, e, ao amanhecer,
Saibas do coração sorrir
Sorrisos de esquecer

Fernando Pessoa. O poeta predileto dele, pensou.
Desatou a chorar. “Porque, meu Deus... mas por quê?”. Abaixou sua cabeça sobre os joelhos em um movimento lento. As mãos apertando os cabelos com desespero. Olhou a sua volta e lembrou-se de tudo. De quando decidiram sobre as cores, da briga pelo quadro. E chorava mais alto.
A tristeza transbordava em lágrimas, assim como a água da banheira que molhava todo o carpete do corredor.
Na porta do banheiro, lembrou do que tinha acontecido e novamente as lágrimas encharcaram seus olhos. Em um movimento insustentável, virou seu pescoço lentamente em direção ao seu quarto. O coração descompassado. As lágrimas caíam em uma freqüência maior. Seus olhos agora estavam estagnados, cheios de lágrimas. E as lágrimas vinham. E elas embaçavam a vista, mas não mudavam os fatos. As lágrimas. As lágrimas que não paravam.
A cama estava desarrumada. O lençol denunciava os últimos momentos... O sangue espalhado pelo quarto traduzia em vermelho todo o terror que ele viveu. Havia vermelho em tudo. Vermelho na cortina de seda. Na fotografia do casal na parede: os cincos dedos. O vermelho da paixão. “Por paixão?”. No chão a faca suja. A lâmina que cortara seu coração, que lhe tirou o sentido de tudo.
Um barulho estridente de lâmina sobre o chão. A água da banheira em minutos transformava-se em um véu vermelho de paixão.

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